PARA QUEM QUER MAIS DO QUE O MESMO

A música popular brasileira é uma das mais – se não a mais – ricas e diversificadas do planeta, tendo uma capacidade inesgotável de renovação. Temos grande variedade de gêneros e músicos criativos que os renovam permanentemente, por meio da recriação e da fusão, seja de coisas nossas ou estrangeiras. As peculiaridades culturais de cada estado, a fronteira com quase todos os países do continente, a capacidade de assimilar, a criatividade e as marcas das culturas indígena e africana são fatores determinantes para a riqueza musical brasileira. Essa mescla está na nossa diversidade de ritmos e na enorme capacidade para a criação de sonoridades, principalmente por influência da herança africana, um ponto de contato que temos com boa parte dos nossos vizinhos e com as influências que chegam de lugares mais distantes, principalmente os Estados Unidos.

A musicalidade dos negros africanos tem origem religiosa, por isso os escravizados superavam a dor de todas as violências que sofriam e o cansaço pelo trabalho forçado para cantar e dançar em homenagem aos orixás, geralmente fazendo isso às escondidas para fugir da acusação de demonismo. Depois de cumpridos os rituais, a pulsação sugestiva dos tambores acompanhada de sons extraídos por mãos calejadas de qualquer objeto ou de palmas criavam harmonias que embalavam a animação de corpos em requebros e passos improváveis e de vozes que improvisavam melodias e versos ao sabor da ocasião.

A fé transformava a dor e o cansaço em motivo para resistir, enquanto forjava variações sonoras que dariam origem ao lundu, ao maxixe, ao coco, ao samba e à mistura que ecoa em todos os cantos do país. Essa mistura fundida com o jazz, o blues, a rumba e outros ritmos aparece nos violões de gente como João Gilberto, João Bosco e Lenine, passa pela inventividade sonora de Caymmi, Gil e Brown, pela delicadeza das melodias de Luedji Luna e pelas confluências de ecos da África que chegaram pelos vizinhos, como é o caso, no Sul, das milongas de Vitor Ramil e, no Norte, da guitarrada de Mestre Vieira. As reverberações dos tambores ancestrais não ficam apenas na forma de criar combinações rítmicas e melódicas ou na maneira de executar instrumentos.

Gente de diferentes gerações, como Noel Rosa, Chico Buarque, Dudu Falcão e Vanessa da Mata, por exemplo, demonstram a grande capacidade de nossos compositores para encontrar a palavra certa, criar o verso na medida exata do encaixe nas sutilezas sonoras das melodias que inventam sós ou em parceria. Isso sem falar no pessoal que traz no sangue, na pele e na alma a herança africana, como Pixinguinha, Ismael, Ataulfo, Itamar Assunção, Cartola, Paulinho da Viola entre tantos outros.

O gigantismo desses mestres ofusca muita gente que faz música de ótima qualidade, mesmo de quem vive no eixo Rio-São Paulo, onde é mais fácil encontrar projeção. Alguns ficam confinados nos seus estados ou nas suas cidades, por opção ou porque sua produção desperta pouco interesse dos gerenciadores dos meios de divulgação, em geral, de olhos mais voltados para o mercado publicitário e as cifras que ele atrai. Édison Guerreiro está nessa turma dos criadores ilhados. Seu processo criativo vem amadurecendo ao longo de anos, forjado pelos que ouviu na infância e na juventude, isto é, os compositores revelados nos festivais dos anos 1960. Ao longo desse percurso, foi juntando uma pitadinha de Lupicínio, bebeu um pouco de Cartola e Nelson Cavaquinho, cheirou outro tanto de jazz e soube juntar tudo com inventividade. Sua música tem um pouco dos que vieram antes e outra parte dos que estão entre nós.

Não faz muito, saiu uma fornada de letras vigorosas e de beleza realçada por melodias intensas e cheias de nuances com arranjos refinados. Agora, surgem novas criações que dão mostras de uma inquietude criativa, porque enveredam por novos caminhos, onde se vê algo de reelaboração de elementos conhecidos, que aparece nas letras e nos ritmos. As indicações são de que vive uma fase de plenitude criadora que combina maturidade e inquietação inventiva. Ouvidos que não se acostumam com a mesmice agradecem.

Paulo Roberto Alves dos Santos
Doutor em Teoria da Literatura
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UESC, Ilhéus/BA
Pesquisador sobre a música popular brasileira